A realidade das trabalhadoras domésticas no Brasil é marcada por jornadas constantes e exaustivas, que, muitas vezes, começam na infância, sem remuneração, e perpassam práticas análogas à escravidão.
Cargas pesadas em um país em que 60% das mulheres relatam cansaço e dores físicas — um quadro de desgaste que se intensificou na pandemia e persiste na rotina. Essa sobrecarga foi mapeada pela Pesquisa Sem Parar 2025, realizada pela SOF Sempreviva Organização Feminista pela a Gênero e Número, com apoio do Ministério das Mulheres.
Além disso, a desigualdade histórica nas relações familiares se sobrepõe: 43% das mulheres ainda são as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico não remunerado. Isso significa que, após cumprirem longas jornadas de trabalho remunerado que exigem alto desempenho físico e mental, essas trabalhadoras ainda precisam cumprir outra jornada ao chegar em casa, dedicando-se ao trabalho doméstico e de cuidado não remunerado da própria família (parceiro e/ou filhos). O acúmulo de responsabilidades e funções acaba comprometendo a autonomia e a saúde dessas mulheres.
Para discutir a urgência da luta por dignidade e reconhecimento profissional, conversamos com Chirlene Brito, coordenadora administrativa e financeira da Associação das Trabalhadoras Domésticas, em Campina Grande (PB), e da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), que também atua como trabalhadora doméstica.
Chirlene reflete sobre a desvalorização da profissão, que atinge principalmente as mulheres negras, e o início precoce da jornada de trabalho, que rouba a infância, a juventude e os estudos. Para enfrentar essa realidade complexa, as mulheres organizadas apostam no compartilhamento de conhecimento e na luta por condições efetivas para transformar a realidade individual e coletiva.

A segunda edição da pesquisa Sem Parar aponta que muitas trabalhadoras domésticas começam a atuar antes dos 13 anos, dormindo na casa da patroa e sem receber salário. Como você vê essa realidade do início profissional precoce e o trabalho análogo à escravidão na categoria?
Chirlene Brito_Historicamente, a maior parte da categoria, bem mais do que a maioria, iniciou suas habilidades, adentrou no trabalho doméstico, ainda quando criança. Essa é uma coisa que a gente vê dentro da perspectiva das companheiras que são resgatadas [em casos de trabalho análogo à escravidão].
No trabalho doméstico, infelizmente, não tem esses resgates coletivos [como ocorre em outros ofícios]. São resgates individuais e, quando se adentra na história dessa mulher, dessa trabalhadora resgatada, ela tem uma história de vida lá dentro, onde perdeu a infância, a juventude, a questão dos estudos, enfim, como a maioria.
Eu sou uma dessas pessoas.
Não fui resgatada, mas comecei [a trabalhar] aos 8 anos de idade.
Tantas outras também têm começado, têm iniciado a sua vida profissional com a ilusão de que vamos ter aquilo que não tínhamos: as oportunidades, as condições financeiras, as condições de bem-estar, as condições de estudo. Traz o “conforto” ou a “segurança” onde a gente adentra.
Eu comecei cuidando de uma criança, mas na verdade eu não sabia nem que era para cuidar. Eu sabia que eu ia para lá brincar. Mas, depois, eu tinha a obrigação de ir todos os dias brincar, até passar a fazer as outras tarefas domésticas da casa. E a responsabilidade? E se acontecesse algo com a criança?
Era o tempo dos broches [usados para alfinetar as fraldas de pano]. Tenho um trauma desses broches, graças a Deus apareceram essas fraldas descartáveis. Eu nem sabia botar, tinha o maior medo, porque, muitas vezes, eu furei meu dedo.
A situação de começar a trabalhar cedo é uma realidade comum ainda?
Ainda. No mundo do trabalho agora, com essa questão bem aflorada da pauta do cuidado, uma das nossas funções é de cuidadoras. Aquela história de dizer assim: “Ah, Fulaninha, vai dormir, só vai dormir com a senhorinha, porque ela mora só”. Então, nisso aí, a gente já está vendo também a volta do trabalho infantil. Isso já dá continuidade àquilo que a gente via.
A Sem Parar 2025 mostra também que o trabalho de cuidado recai desproporcionalmente sobre as mulheres. 48% delas cuidam de alguém sem remuneração.
A palavra “cuidadora” suaviza o trabalho? É como se não fosse um trabalho?
Essa palavra cuidadora caracteriza [o trabalho] como se não fosse uma função, mas uma profissão. Qual a sua profissão? Cuidadora de pessoas. A profissão seria trabalhadora doméstica. Função é aquela de lavar, passar, cozinhar, babá, faxineira, jardineiro, motorista. E você é o quê? Sou cuidadora de pessoas. Então, desvaloriza a categoria.
Mesmo assim, a gente sabe que a função de cuidadora tem várias categorias também. Mas é a função, não é a profissão. A gente tem uma lei específica que diz: “Denomina-se trabalhadora doméstica aquela pessoa que exerce a função tal”, e dentro delas tem a função de cuidadora.
Quando alarmou, estancou essa questão de cuidadoras [algumas trabalhadoras lutam para o reconhecimento da categoria como algo separado da profissão de trabalhadora doméstica], até porque o salário é maior [enquanto trabalhadora doméstica]. A desvalorização dentro do trabalho doméstico precariza cada vez mais a nossa luta, invisibiliza a gente, e desvaloriza, de fato, a categoria de trabalhador doméstico nas suas funções.
A precarização vem diretamente do trabalho escravo. Não só na questão da privação da liberdade, vai muito além. Ah, mas está cuidando de uma pessoa amiga, é melhor [a criança ou adolescente] estar lá do que namorando ou brincando na esquina, dizem. Mas não tem remuneração, ela está deixando de descansar e de viver a própria vida. Como muitas companheiras que deixam de viver sua vida para cuidar da vida das outras pessoas, dos empregadores, dos filhos dos empregadores.
É um sentimento enorme que as trabalhadoras adquirem, porque realmente é aquela casa grande, é aquela coisa bonita, e aí é um orgulho para quem está em casa [a própria família], mas a própria pessoa nem sabe das violações que está vivendo. Ela nem tem conhecimento desses direitos, das condições dignas que ela deveria ter de trabalho, não só em relação ao próprio empregador, mas também do Estado.
A Sem Parar 2025 revelou que 60% das mulheres entrevistadas estão cansadas e com dores físicas. A pandemia aumentou a carga de trabalho, mas o seu fim não resultou em alívio. Como você percebe essa realidade entre as trabalhadoras domésticas?
O cansaço vem a partir daquelas que já têm um pouco de conhecimento e sabem dizer isso, porque tem muitas que nem sabem dizer. Veio como uma rotina já, faz muito tempo que faz isso. As que têm um pouco de conhecimento já conseguem expressar esse cansaço, essas dores físicas.
Tanto as mensalistas, quanto as diaristas não têm nem como dizer que estão cansadas ou que querem esse tempo. Não tem como falar que está cansada, porque o período de férias dela já está determinado, e não é ela quem decide. Ela não tem esse conhecimento de que pode negociar. Essa falta de conhecimento ainda deixa muitas de nós cansadas, com sobrecarga.
*Aline Gatto Boueri é colaboradora da Gênero e Número