A sobrecarga de trabalho doméstico e do cuidado é uma realidade estrutural para as mulheres no Brasil, e os desastres ambientais acentuam essa desigualdade de forma dramática. A pesquisa Sem Parar 2025 aponta que 48% das mulheres cuidam de alguém sem remuneração, uma condição que se torna ainda mais crítica quando elas são expulsas de seus territórios por barragens ou eventos climáticos. A maioria das pessoas cuidadas são crianças e idosos da própria família, e a sobrecarga feminina no cuidado aumentou em 13% entre 2020 e 2025 — especialmente com idosos.
O levantamento foi realizado pela SOF Sempreviva Organização Feminista e pela Gênero e Número e com apoio do Ministério das Mulheres.
Para o Movimento dos Atingidos e Atingidas por Barragens (MAB), essa disparidade é um ponto central da luta. Para entender como as mulheres são impactadas por esses eventos no Brasil, conversamos com Dalila Alves Calisto, pedagoga, mestra em desenvolvimento territorial, descendente dos povos indígenas Jaguaribaras e Tapuias, e integrante da Coordenação Nacional do MAB.

Atingida pela Barragem Castanhão, no Ceará, Dalila explica o conceito de que “ser atingida é para a vida toda” e detalha as dimensões pelas quais as mulheres são desproporcionalmente impactadas, da perda de direitos patrimoniais à destruição das redes de apoio.
Dalila compartilha a história do MAB, a expansão da luta para os atingidos pela crise climática e como o movimento articula a organização feminina, inclusive por meio da arte-denúncia das Arpilleras, em busca pelo direito à terra, pela reparação integral dos danos causados, além de uma vida mais justa e sem violência.
Para começarmos, você poderia apresentar o MAB, sua origem, trajetória e o perfil das mulheres que fazem parte do movimento?
Dalila Alves Calisto_O Movimento dos Atingidos por Barragens é um movimento social, de caráter popular e reivindicatório, que surge no Brasil nos anos 1970, no período da ditadura militar, quando se construíram muitas barragens – especialmente hidroelétricas, mas também barragens de acumulação de água, de mineração, termelétricas, em diversas regiões.
As famílias e as populações atingidas por esses empreendimentos passaram a se organizar, visto que, já naquela época, não havia nenhuma política de proteção, de garantia de direitos para essas populações. Não havia direito à indenização, direito ao reassentamento, e não havia nenhuma preocupação com a reparação a essas famílias. Ao contrário, havia muita violência. As famílias eram expulsas dos territórios.
A única forma de resistir e garantir alguma perspectiva de direito era se organizando. As famílias começaram a se organizar de forma regional, formando comissões de atingidos. Nesse período, apesar de ser uma ditadura, havia resistência dos trabalhadores. Estavam se formando a CUT, os sindicatos dos trabalhadores rurais, o próprio PT e as comunidades eclesiais de base, que estavam sendo constituídas como uma forma de resistência a esse momento político.
Todas essas formas de organização e lutas foram convergindo para o fortalecimento das lutas regionais que, mais tarde, em 1991, resultaram na criação do MAB, um movimento nacional, fruto de todas essas lutas que aconteceram na Amazônia, na região Sul do país, no Sudeste e também no Nordeste.
De 1991 até aqui, são 34 anos de organização enquanto movimento nacional. Um dos principais objetivos é fazer a luta para a garantia dos direitos das populações atingidas por barragens. Inicialmente, essa luta surge no campesinato, nas regiões camponesas, mas as barragens não estão localizadas só no campo. Ao longo da nossa história, a gente foi percebendo isso e expandindo a nossa atuação para a região urbana. Hoje, o MAB também está organizado nas capitais, nas regiões urbanas, em 20 estados do Brasil.
Você pode falar um pouco sobre sua trajetória no movimento, sua atuação na organização e onde você vive hoje?
Dalila_Eu sou militante da Coordenação Nacional do MAB. Eu também sou atingida pela barragem Castanhão no Ceará, construída nos anos 90. É o maior complexo de barragem de usos múltiplos da América Latina. Ela foi construída para abastecer a região metropolitana de Fortaleza, o Porto do Pecém, o funcionamento da usina termelétrica do Porto do Pecém e, principalmente, para o agronegócio na Chapada do Apodi. O discurso era que ia resolver o problema da água no sertão.
Quando ela começou a ser construída, eu tinha 4 anos de idade. Eu morava na comunidade Alagamar, em Jaguaribara. Meus pais e outras pessoas da comunidade se envolveram na luta, e essa luta contra a Barragem Castanhão, pelo direito a reassentamento e indenização, foi o que fez nascer o MAB no Ceará, nos anos 1990, na época em que o MAB estava se tornando um movimento nacional.
Ainda. No mundo do trabalho agora, com essa questão bem aflorada da pauta do cuidado, uma das nossas funções é de cuidadoras. Aquela história de dizer assim: “Ah, Fulaninha, vai dormir, só vai dormir com a senhorinha, porque ela mora só”. Então, nisso aí, a gente já está vendo também a volta do trabalho infantil. Isso já dá continuidade àquilo que a gente via.
Eu costumo dizer que convivi com a condição de ser atingida desde a minha infância. Quando fui tendo consciência, eu já sabia que era atingida e já convivia com todo esse processo de luta, porque meus pais participavam ativamente. Ser atingido é meio que para a vida toda, porque toda a sua realidade é condicionada a partir disso. Toda a sua trajetória de vida vai ser marcada por essa condição, seja pelos impactos que permanecem, seja pela própria condição.
Aqui, por exemplo, conquistamos o reassentamento e a indenização, 13 hectares de terra para cada pessoa, há uns 20, 23 anos. Mas os impactos continuam. Há um grande impacto na saúde das famílias, muitos casos de suicídio e problemas depressivos. Antes, o pessoal plantava feijão na vazante, hoje já não planta. Tem a terra, mas mudou a cultura, e o acesso à água diminuiu. O fato de você ser marcado por isso passa a fazer parte da sua identidade.
Eu contribuo com o MAB há 11 anos. Antes, quando eu era adolescente e jovem, eu participava aqui da comunidade, que é o reassentamento Nova Alagamar. Minha família tem descendência indígena. O nome Jaguaribara traz essa história de povos indígenas, os Jaguaribaras e Tapuias, e eu me identifico como descendente.
Em 2014, fui contribuir na construção do MAB no Piauí e Maranhão, onde passei oito anos, por causa da previsão de construção de hidroelétricas. Em 2022, fui para São Paulo, na Secretaria Nacional. Hoje, contribuo no Coletivo de Formação de Mulheres e na Plataforma Operário Camponesa de Água e Energia. Eu moro em São Paulo, na capital, com meu companheiro e minha filha de 1 ano e 4 meses.
Dentro do movimento de atingidos por barragens, há uma organização só de mulheres?
Dalila_Não é só de mulheres, mas em 2013, nesse processo histórico, a gente foi realizando estudos e compreendendo melhor essa realidade. O estudo do Conselho Nacional dos Direitos Humanos foi um marco ao reconhecer que existem violações, e são muitas. Depois, a gente foi constatando que as mulheres, na construção de barragens, são as mais atingidas, são as que primeiro sofrem os impactos, seja da construção ou dos rompimentos.
Decidimos que seria importante desenvolver um trabalho de auto-organização das mulheres dentro do movimento, que continuaria sendo misto. Nesta sociedade capitalista, existe um sistema de opressão que impede as mulheres de participarem da luta e dos espaços políticos.
Começamos realizando encontros, orientando para que todos os estados tivessem um Coletivo de Mulheres Estadual, e foi criado um Coletivo Nacional. Conhecemos a técnica das Arpilleras, usada durante a ditadura do Chile por mulheres que usavam a costura para denunciar o desaparecimento de seus companheiros e as violências que estavam sofrendo. Conhecemos em 2013 e trouxemos para o Brasil.
Durante a construção da usina Girau em Santo Antônio, em Rondônia, detectamos, junto com a universidade, que no processo de construção de barragens o aumento de casos de estupro e de violência doméstica contra as mulheres aumentava. Além disso, detectamos que as mulheres eram as mais atingidas e precisávamos fortalecê-las para enfrentar isso.
As oficinas que realizamos não são só sobre costura. Fazemos o debate sobre o patriarcado, o machismo e as violações dos direitos das mulheres. Depois de um dia e meio de estudo teórico, traduzimos isso na arpillera. A ideia é transformar essa habilidade com a agulha em uma denúncia política. A construção das arpilleras é coletiva, e há sempre o processo de estudo e debate para orientar o tema que vamos apresentar.
Um dos resultados mais importantes desse trabalho, nesses 10 a 13 anos, é o aumento da participação das mulheres nos espaços do MAB. Hoje, somos maioria absoluta em todos os espaços, desde a base até as direções e coordenações.
O MAB acabou, em certo momento, incluindo também atingidos por outras questões climáticas, como as enchentes. Como se deu essa mudança?
Dalila_Começou com os casos de rompimento de barragem, que foram se tornando comuns, como Mariana, depois várias outras e Brumadinho. A prática que adotamos desde o início foi a de solidariedade com uma intenção organizativa.
A solidariedade não é só no auge da mídia, nos primeiros dias. É ir até esses locais e depois permanecer lá, não ir embora depois que as coisas se acalmam, para construir um processo organizativo. É estar lá no momento em que as famílias estão precisando mais, fazendo o que for necessário: buscar e distribuir alimentos, fazer campanha, mutirão, limpar a casa.
A prática é de ir no momento mais crítico, mas de ficar para construir uma base, porque depois que a notícia sai do jornal, todo mundo esquece, mas as famílias continuam lá, com a perda dos seus móveis, sem casa, hospedadas nos ginásios. A questão é: quem vai estar junto para fazer o trabalho de reivindicação das pautas daquelas comunidades?.
Essa prática, que veio dos rompimentos de barragem, foi importante para a gente atuar com os novos atingidos pelos eventos climáticos, como em Petrópolis, no Rio de Janeiro, na Bahia, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul. Em muitos desses locais onde estão acontecendo os eventos climáticos, a gente já tinha uma atuação.
Você comentou que as mulheres são mais atingidas do que os homens. Por quê?
Dalila_Nós fomos detectando, ao longo da história, vários eixos e dimensões que comprovam o quanto as mulheres são mais impactadas.
- Conceito patrimonial: Nesta sociedade patriarcal e capitalista, quando há a desapropriação, o direito à propriedade e os documentos geralmente estão em nome do homem. Quando se garante indenização ou reassentamento, muitas vezes a mulher não tem o documento para comprovar que é atingida e acaba perdendo o direito.
- Papel social e doméstico: Historicamente, foi atribuído à mulher o papel de cuidar do lar, dos filhos e dos doentes. Quando você se muda, você perde toda a rede de apoio (família, vizinhos, escola, posto de saúde). O peso da reorganização social e familiar recai sobre as mulheres.
- Saúde e educação: Com a chegada de uma quantidade enorme de trabalhadores para a construção [da barragem], a estrutura da cidade (postos de saúde, educação) não está preparada, chegando ao limite. Isso vai impactar mais as mulheres por conta desse papel histórico que elas desempenham.
- Violência: A violência contra as mulheres aumenta muito na construção de barragens, com o aumento de casos de estupro e violência doméstica. O dinheiro trazido pelos trabalhadores gera prostituição e a circulação de drogas e álcool. Essa violência não é a mesma nas regiões vizinhas.
- Trabalho: As mulheres acabam ficando nos trabalhos mais precarizados. Quando você se muda, perde o trabalho e a renda, e é muito mais difícil se restabelecer e conseguir garantir trabalho e renda no novo local. As mulheres que vivem muito mais na informalidade do que os homens vão sofrer mais com isso.
Você disse que ser atingido é para a vida toda. O que isso significa na prática?
Dalila_Significa que, após você ser atingida, vai conviver com essa condição por toda a sua vida. A forma como já são tratadas as populações atingidas no Brasil faz com que os problemas e os impactos que sofrem não tenham uma atuação efetiva do Estado brasileiro e das empresas donas das barragens. Não há uma atuação que busque sanar, reparar, garantir a reparação integral das famílias, ou sanar os problemas de forma imediata. Então, os impactos permanecem e acabam se reproduzindo.
Até pouco tempo, no Brasil, as pessoas não tinham ideia do que é ser atingido. Depois de Mariana, a sociedade começou a entender o que é o atingido, o que ele passa, o impacto e o perigo que é uma barragem. Mas, no caso das mulheres, há muito a se compreender: o quanto elas são mais atingidas e quais são esses impactos. Isso ainda é pouco conhecido e pouco debatido, tanto pela sociedade quanto pelo próprio poder público.
Qual a importância de ter mulheres atingidas na pesquisa, na pauta, no debate?
Dalila_A gente tem no Brasil uma defasagem muito grande de dados sobre as populações atingidas. Não sabemos quantos milhões de atingidos de fato existem, nem quantas mulheres atingidas por barragens específicas, ou qual o impacto maior (se é na saúde, por exemplo). O Estado brasileiro não tem esses dados.
É importante que as mulheres atingidas e organizadas participem dessa pesquisa [a Sem Parar 2025], para qualificar a nossa luta e a nossa pauta. Tivemos a oportunidade de conhecer a metodologia de como se faz essas pesquisas para construir um diagnóstico. Como estamos nesse processo de expansão para novos atingidos, há uma necessidade maior de conhecer melhor quem são as mulheres atingidas que estão organizadas, a faixa etária, a formação, onde estão.
A participação expressiva das mulheres atingidas na pesquisa se deve ao fato de que há uma participação muito ativa delas na luta política e na organização. Elas estão cada vez mais atuantes nos territórios e nas diversas tarefas e espaços que o movimento constrói.
Fizemos um plano organizativo com intencionalidade para envolver grande parte das mulheres atingidas de várias regiões do Brasil. Fizemos plenárias nacionais com as coordenadoras de cada estado, que depois replicaram as orientações em cada município.
Muitas delas também foram aplicadoras da pesquisa, especialmente em regiões do interior do país, onde o acesso à internet ainda não chegou para todas ou onde algumas companheiras têm dificuldade de leitura e escrita. Assim, conseguimos ter a participação de mais de 500 mulheres, de várias regiões do Brasil.
Diante da expansão dramática no número de atingidos, quais são os principais desafios organizativos que o MAB enfrenta para atuar?
Dalila_Além das populações atingidas por barragens, nós também estamos organizando os atingidos pela crise climática.
O Brasil é um dos países que mais tem barragem, são mais de 24 mil, sendo mais de mil hidroelétricas. Temos as de mineração, de acumulação de água, que estão espalhadas e, hoje, com 40 ou 50 anos de construção, não têm uma atenção adequada, nem fiscalização. A gente costuma dizer que elas funcionam como “bombas-relógio”. Estamos vendo muitos rompimentos nos últimos dez anos, o que é muito preocupante.
Ao longo do tempo, fomos organizando as populações atingidas pelos rompimentos das barragens, que a gente chama de crimes socioambientais. Hoje, vemos uma expansão do número de pessoas atingidas. O Estado brasileiro não tem dados muito definidos sobre as populações atingidas. Durante algum tempo, a gente trabalhava com a estimativa de que existia pelo menos 1 milhão de famílias atingidas no Brasil, e que 70% delas não tinham acesso a indenização ou reparação. As que tiveram, foi porque houve um processo de luta para conseguir.
Esse dado de 1 milhão foi feito a partir de estudos ao longo do tempo. Em 2010, um estudo feito pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (hoje Conselho Nacional de Direitos Humanos) comprovou que existem pelo menos 16 direitos que são sistematicamente violados e afirmou que as mulheres são atingidas de uma maneira proporcionalmente maior. Nos estudos feitos pelas construtoras, a gente sempre constata que a previsão de atingidos é subestimada, sendo possível calcular o dobro ou o triplo do número.
Com essa crise do capital, que é a crise climática, hoje a gente fala que os estudos oficiais preveem que mais de 10 milhões de pessoas serão atingidas diretamente pelas mudanças climáticas só no Brasil. Vão ter que sair das suas casas nos próximos anos, seja nas capitais, com aumento do nível do mar, ou em casos de enchentes. Isso traz vários desafios do ponto de vista organizativo, e define o conceito de atingido e como a gente se organiza enquanto MAB.
*Schirlei Alves atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seus trabalhos mais recentes foram para a Folha de S.Paulo, Abraji, Agência Lupa, O Joio e O Trigo, The Intercept Brasil e Portal Catarinas. Recebeu como reconhecimento os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Em 2022, concluiu especialização em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.